sexta-feira, 22 de outubro de 2021

A Dor do chifre

 

Vivia tranquilo debaixo das sombras de minhas mangueiras e respirava os verdes perfumes dos eucaliptos que ladeavam o sítio. Eu e minha esposa após quarenta e quatro anos de eterna união gozávamos de enorme afinidade como um jovem casal apaixonado. Era minha companheira inseparável, cuidávamos da nossa propriedade rural. Juntos fazíamos os inúmeros trabalhos campesinos, principalmente, na ordenha e, nas horas vagas, preparávamos doces caseiros e queijos frescos.

A nossa rotina era tão sagrada! Maria acordava, pontualmente, os setes dias da semana, às 4:00 horas da manhã. O cheiro aveludado do café e as palavras de imensa doçura da minha esposa eram meu despertador. Como um ritual, escolhia minha roupa, calçava meus sapatos, ajeitava minha cinta.  Após todo o cuidado, tangíamos as vacas ao curral. O milagre branco jorrava como enxurrada.

De repente, uma grande ventania assolou nossa vida. Em meados de março, numa madrugada, com céu enfumaçado, cheia de nuvens negras e frias. A dor acinzentou todo o meu ser. O curral ficou manchado de sangue... Não esperava passar por dolorosa situação.

Vocês nem imaginam o que aconteceu...

Dor, após dor, despencava. Sentia minuto a minuto fagulhas me consumindo. Eu estava dentro do estábulo e, senti, a Dor do chifre.

- Não... não pode ser! Não, meu Deus! – gritava e gemia na escuridão daquela triste manhã.

Que Dor! Estremeço ao recordar; tento esquecer, mas é impossível! A mais zelada, mansa e amável das vacas, ligeiramente, ergueu a cabeça quando eu ainda a amarrava e, estupidamente, o chifre atingiu meu olho. Não, não foi traição, Mansinha,  jamais me trairia. Fez sem imaginar a crueldade, na pura inocência, me feriu.

Tudo escureceu... A dor rasgou meus sentidos. Doeu minha carne! Corrompeu meu ser. Senti meu olho esquerdo des-man-chan-do.

Ah, vaga lembrança que ainda perfura meus sonhos, aniquila meus sentidos! Sinto ainda o grito deformar minha infinita alegria. Após três dias de internação, o oftalmologista dilacerou minhas esperanças quando declarou que a minha retina havia deslocado e meu nervo óptico rompido.

- Doutor, que tipo de cirurgia posso fazer para recuperar minha visão? – indaguei, transtornado.

-Infelizmente, não é possível reverter o quadro! – respondeu, o médico com tamanha secura e exatidão. - Para rompimento de nervo óptico, nada pode ser feito. Esta situação é irreversível! Agora, você terá que se acostumar com a visão monocular.

Como viver com esta triste constatação? A minha visão havia morrido e levado junto, as últimas esperanças. Reflexões, conselhos, visitas, mais visitas. Estava, realmente, sem rumo. Eu não conseguia aceitar que estava C-E-G-O.

O tempo foi se entrelaçando como um fio. Fui observando cada detalhe e percebi que Deus faz, em silêncio, tudo perfeito. E neste silêncio aprendi a contemplar as maravilhas divinas: o mistério da borboleta que deixa o casulo. E, foi neste silêncio que aprendi a viver sem enxergar com meu olho esquerdo; aprendi que poderia ter sido pior se o chifre da vaca fosse mais fino e comprido. Com serenidade aprendi a ouvir a voz de Deus que tocou profundamente meu coração. Aprendi a ver o lado bom e verdadeiro da vida. Compreendi olhar verdadeiro e singelo de Maria, o companheirismo da família como o principal passaporte para a felicidade. Reaprendi a enxergar com o coração.  Agora meus olhos fitam o cheiro do amor e a satisfação quente de uma manhã de sol. A minha vida segue saborosa como a alegria das sete cores do arco-íris. E Mansinha, protagoniza, o nosso sustento produzindo mais de dez litros e tendo mais e mais crias. Ensinando- me a necessidade de perdoar para ser feliz. Um dia eu e Mansinha nos separaremos, mas que isso seja pela vontade de Deus.

Nenhum comentário:

Postar um comentário