sábado, 14 de novembro de 2015

A dor da fome - Daniela Arfelli


Eu já senti a dor da fome, passava tanta fome, que é impossível esquecer desses dias tão miseráveis. O estômago roncava a mil, ouvia-se por longo tempo, cessava apenas quando milagrosamente a galinha botava um ovo.
Ficava pontualmente esperando.... esperava.... esperava.... olho no olho. Meus olhos suplicavam, a dor aumentava...Nesse dia a galinha não botou. Fome! Que fome! Até que tive a grande ideia: convidar minha irmã para visitar a roça do vizinho, era quatro quilômetros.
Fomos nos rastejamos, mas ao chegar lá toda canseira foi retirada, apaixonei à primeira vista pelas gigantes melancias, as verdinhas abóboras e grande espigas de milho verde.
Avassaladora nossa vontade de comer. Apanhamos tudo muito rápido e fomos como burros de cargas, carreguei uma enorme melancia por quatro quilômetros. Cheguei em casa, com o olhar da satisfação, como o caçador quando traz a sua caça. Mamãe olhou para mim e rapidamente gritou:
- O é que isto? Onde arrumaram?
Puxando-me pelo cabelo fez-me confessar. Respondi prontamente:
- Peguei da roça do vizinho. Achei que iria gostar...
- Volte lá e entregue tudo a ele, eu não estou criando filha ladrona aqui!
Saímos chorando muito, o calor do final da tarde, a fraqueza, retornar nas costas com tudo aquilo mais quatro quilômetros. Senti como Jesus Cristo carregando a cruz, a humilhação, o cansaço. Tudo se misturava ao suor transcorrendo do meu rosto.
Depois de muita tortura chegamos na sede do sitio do vizinho. Pedimos muitas desculpas. Ele nos olhou com tanta compaixão, como Maria aos pés de Jesus, e, para nossa felicidade, arrumou carregou a carroça com muito mais... e nos levou para casa.

Quem dá aos pobres empresta a Deus, o qual virá a pagar com juros largamente vantajosos. (Provérbios, 19- 17)

Amo-te!

Superei eternos anos de infinita saudade
Esperei a colheita do tempo, do amor amadurecido
Reencontrei o íntimo amigo adormecido
Agora meu coração aqueceu com o sol da felicidade.





Demorei muito para reencontrá-lo, agora eu quero só você!

A dor do chifre


Daniela Arfelli
Vivia tranquilo debaixo das sombras de meus manguezais e respirava os verdes perfumes dos eucaliptos. Meus olhos fitavam o cheiro de amor e a satisfação quente de uma manhã de sol. Eu e minha esposa gozávamos de enorme similaridade, mesmo após quarenta e quatro anos de eterna união. Era minha companheira inseparável, cuidávamos da nossa propriedade rural; juntos fazíamos os inúmeros trabalhos campesinos, principalmente na ordenha leiteira. A vida seguia saborosa como a alegria das sete cores do arco-íris.
Ida acordava pontualmente, os setes dias da semana, às 4:00 horas da manhã, o cheiro macio do café e as palavras de imensa doçura da minha esposa eram meu despertador. Como um ritual, escolhia minha roupa, calçava meus sapatos, ajeitava minha cinta.  Após todo o cuidado comigo, íamos ao curral e começávamos a tanger as vacas para o milagre branco jorrar como enxurrada e ser bebido todos os dias. A rotina repetia-se.
De repente uma grande ventania assolou nossa vida. Em meados de março, numa madrugada com céu enfumaçado, cheia de nuvens negras; o sol esfriou e a dor acinzentou. O curral ficou manchado de sangue... Não esperava passar por dolorosa situação.
 Nada mais a fazer.  Dor após dor despencava. Sentia minuto a minuto fagulhas me consumindo. Estava dentro do estábulo e, senti a dor do chifre.
- Não, não pode ser! Não, meu Deus! – ouvi ecos da escuridão daquela triste manhã.
Que dor! Estremeço ao recordar; tento esquecer, mas é impossível! A mais zelada, e amável das vacas, ligeiramente, ergueu a cabeça quando eu ainda a amarrava e, estupidamente o chifre atingiu meu olho. Não... não foi traição, ela jamais me trairia. Fez sem imaginar a crueldade, na pura inocência me feriu.
Tudo escureceu... A dor rasgou meus sentidos, corrompeu meu ser, senti meu olho esquerdo diluindo.
Ah, vaga lembrança que ainda perfura meus sonhos, aniquila meus sentidos. Sinto ainda o grito deformar minha infinita alegria. Após três dias de internação o oftalmo rasgou minhas esperanças quando declarou que a minha retina havia deslocado e meu nervo óptico rompido.
- Nenhuma esperança, doutor? Que tipo de cirurgia posso fazer para recuperar minha visão?
-Infelizmente não é possível rever o quadro - respondeu com tamanha secura e exatidão -. Para rompimento de nervo óptico, nada pode ser feito! É irreversível.
Como viver com esta triste constatação? A minha visão havia morrido e levado junto, as últimas esperanças. Reflexões, conselhos, visitas, mais visitas. Estava sem rumo. O que fazer?
Deus fez a natureza silenciosa e produtiva. As plantas crescem no silêncio. Meus eucaliptos cresceram sem fazer barulho. E neste silêncio aprendi a contemplar as maravilhas de Deus: o mistério da borboleta que deixa o casulo.
Tudo acontece no silêncio. E, foi neste silencio que aprendi a viver sem enxergar com meu olho esquerdo, aprendi que poderia ter sido pior se o chifre fosse mais fino e comprido. No silêncio aprendi a ouvir a voz de Deus que tocou profundamente meu coração. Aprendi a ver o lado bom e verdadeiro do amor, o olhar de cumplicidade da minha esposa, compreendi que companheirismo de minha família é o principal passaporte para a felicidade.
Aprendi tudo no silêncio, sempre no silêncio...